Todas as vezes que eu gostava de alguém, eu lembrava da minha infância. Não era no primário que eu lembrava, mas sim das pessoas que tive contato quando eu estava na terceira série do fundamental. Eu gostei de um menino chamado Jean. Me lembro pouca coisa, e tive a impressão de que ele não gostava de mim. Na verdade, éramos amigos, nada mais. Só que para mim... Para mim ele era muito mais que um amigo. Coube uma viagem, então, para ele. Mudou de casa, e não sei para onde ele o foi... Sumiu do mapa, e me deixou.
No plano seguinte, aparece Éder. Éder, ou melhor, Éden (paraíso?), foi o meu melhor namorado. Digo, companheiro? Não, não. Estou contando apenas pedaços do que eu vivi. Éder era um cara muito legal, muito gentil. Esse sim, gostava de mim. Me dava atenção, mais do que Jean.
Me mandava cartas todo dia. A gente ficava junto na hora do recreio... eu pegava em sua mão, e ficava com ele, comendo alguma coisa, pra logo ir pra sala. Seu cabelo era loiro, mas ao passar dos tempos, ele foi tendo traços escuros, como o da minha prima Danieli. Pedaços loiros, pedaços negros. Ele ainda continuava bonito, afinal, essa metade-metade não fazia o perder o seu charme. O que ainda deixava mais lindo era... Imagina? Imagine sardas. Muitas sardas, por todo corpo, por todo lugar. É claro que eu só vi do rosto, e do braço.
Ele começou a me mandar cartas todo dia, quando eu iniciei esse processo. Mas, a carta que eu lembro até hoje, foi aquela que ele fez um desejo, e escreveu o quanto gostava de mim. Não planejávamos casar, nem nada. Nunca nos beijamos, mas nos gostamos. Namorávamos, então? Para nós, sim. Mas para as crianças, não.
Pulei para a quarta série. Éder sumiu, como Jean... mas permaneceu mais que este último. Vi Éder no final do ano, andando de bicicleta. Ele já estava crescido! Muito mais bonito do que nunca. Os pedaços negros do cabelo ficaram mais fortes, e sua parte loira também. Ele sorriu, infinitamente, para mim... seu sorriso tomou conta de todo o seu rosto. Depois disso, só o vi depois da quinta série.
Quinta série: mudei de colégio. O que eu estudava ia até a quarta, aí tive que mudar. Adorei o novo colégio, mas isso aconteceu só depois. Antes de eu me mudar, eu não queria ir pra lá. Odiava o nome, as coisas, as pessoas. Eu era uma idiota, afinal, pois eu julgava sem saber. Ainda mais, sem saber que, lá neste colégio, iria estudar Murilo. Murilo... meu coração entorpece ao falar esse nome.
1° dia de aula. Professores novos, pessoas novas, caras novas. Camiseta azul, calça azul, tênis limpo. Sem óculos. Cabelo escuro, armado. Feia, nojenta para todos. Isso era o que todo mundo pensava de mim, quando começaram a me ver. Por fora eu tinha tudo de errado, e por dentro, tudo de perfeito. Eu passava cola pras minhas amigas, todo mundo queria. Negociava trabalhos. Ganhava dinheiro, e experiência. Por isso eu digo: atrás de um rosto feio, existe uma inteligência rica! E em Murilo, tinha rosto lindo e inteligência quase-rica. Eu o achava muito esperto. Mas nunca percebi que... ele era muito burro. Estava na quinta série com 14 anos! Enquanto eu tinha 10. Era o homenzarrão da classe. Era o mais bonito.
Murilo usava óculos, confundia a pronúncia de D com T, falava embaçado, não conversava comigo, era tímido (mas quando não era, puxa vida hein), tinha muitos amigos, brincava e zoava com os garotos, e não zuava as meninas. Ilamara, amiga minha de classe, dava em cima dele, às vezes, para me provocar. Todo mundo sabia que eu gostava dele, até ele. E quando ele soube, disse : "Não costumo ir ao zoológico". Ele falou sério, pelo menos pra mim, que levo tudo à sério. Isso doeu muito, muito mesmo. Poderia dizer que não queria ficar comigo, em vez de falar isso. Eu tinha apenas 10 anos, não sabia nada de amor, e sabia tudo de dor.
Ilamara e suas amigas costumavam pedir caneta colorida para mim. Eu emprestava, emprestava tudo. Mas elas não me emprestavam... eram idiotas, eram medíocres, injustas. Se eu fosse bonita, elas me emprestariam. Pedi uma vez, uma caneta emprestada, dessas coloridas que eu adorava usar. Ela disse não, e virou o rosto.
Eu não costumava usar shorts, pois eu era muito tímida. Usava só calça, por causa disso. Pros meninos não verem minha perna... Eles sabiam que eu jogava futsal, e que era uma menina meio durona. Mas morria de medo das outras. Um dia eu fui de shorts, ia ter campeonato. Eu queria escondê-las, pernas atrás de pernas. Não tinha como... notaram minhas pernas, meu corpo, meus pés, meu tênis. Minha cocha, minha panturrilha. Eu queria sumir, não queria que me vissem. Sentia falta de que alguém me notasse, mas não desse jeito... Eu andava muito sozinha, me escondia das pessoas. Quando, então, me notaram, desse jeito, vi como é a apreciação humana. É ridícula, vulgar, podre. Depois desse dia, decidi então, que a melhor coisa é não ser notada... é ser tímida - ao extremo se quiser -, é ser quieta - pois assim ninguém pode te julgar que você falou mal de alguém -, é ser indiferente para os outros - ninguém vai querer te bater, porém ninguém vai querer te oferecer uma bolacha. Mas com esses pontos negativos de tudo, eu já me acostumei. Me acostumei em dar e não receber, em ajudar e não ser contribuída nas dificuldades. Eu precisava continuar a ser desse jeito, depois desse dia. Decidi isso porque vi como as pessoas são, quando você tem algo a exibir...
Antes de eu falar do meu pior sofrimento com Murilo, eis pronunciarei as partes boas. Ou indiferentes, mas sei que vou deixar pra depois a parte ruim. Enfim, tivemos um amigo-secreto na sala. Final de ano... íamos pra 6°série. Murilo tinha me negado uma só vez, sobre a frase do zoológico. Eu nunca falava com ele, morria de vergonha de fazer isso... tinha medo de levar outra patada. Antes de ter levado, eu ainda não falava muito com ele. Pedia algo emprestado, ou perguntava sobre alguma prova. Nossas conversas eram superficiais. E nossos risos, fortes e difícieis de serem esquecidos.
Eu não lembro quem eu tinha pegado no amigo-secreto. Devia ser alguém indiferente para mim. Eu queria pegá-lo, isso sim. E dar um presente muito bom... algo que ele realmente gostasse. Algo que fizesse ele mudar a visão crua que ele tinha de mim. Mudar a visão cega e vazia que ele tinha de mim... Só sabiam que eu era feia, e esperta. Que tirava notas boas. Que passava cola, e que não ganhava nada, quando precisava de ajuda... Só sabiam dessas futilidades. Não sabiam o que eu pensava, qual matéria mais gostava, o que eu queria ser quando crescer, com quem eu queria transar, etc.
E, adivinha, quem logo me pegou? Parece coisa de Deus! Foi Murilo. Murilo Paganini, era seu nome completo. Nunca esqueci esse sobrenome.
Murilo usava óculos, muito grosso. Era alto, moreno claro, bem claro. Tinha pernas altas, não muito finas. Parecia o meu irmão - e acho que foi por isso que me apaixonei por ele. Ele tinha cabelo curto, e usava gel diariamente. Deixava o cabelo com espetos. E usava óculos, óculos. Sempre tive uma queda por óculos, não sei porque. E isso se fortaleceu, depois que eu tinha me apaixonado por ele...
E assim se procedeu. Ele me pegou no amigo-secreto. Dentro da sala, todo mundo falava um pouco antes das pessoas que pegavam. Uns mentiam, uns diziam a verdade, uns falavam zoando. E eu, esperava o que a pessoa que tivesse me pego - que foi Murilo - falaria de mim. E a curiosidade maior era saber o que eu ganharia!
Chegou a vez de Murilo falar. Falou sobre um pouco a pessoa. E eu não sabia ainda que era eu...eu...eu... Não me recordo o que ele disse. Não me recordo mesmo. Faz tempo. Tenho 15 anos hoje. 15 anos... e lembro do meu passado só algumas partes.
Ele me deu o presente. Não lembro se me abraçou. Ele me deu um óculos. Mas não era um óculos normal!
Eu, no início, não entendi porque ele me deu aquilo. Era um óculos verde... parecia-se desses normais, pra usar por causa de algum problema na visão. A única diferença era que, em vez de transparente, ele era verde. Verde! Verde! Ai meu Deus.. eu não sei porque ele me deu um óculos verde! Pra quê eu ia usar um óculos verde? Pra quê? Ele me tirou pra cega? Pra vesga? Ele acha que eu preciso usar óculos, é isso que Murilo achava de mim? Eu enchergo muito bem! Murilo acha que eu não enchergo direito? Ele acha que eu tenho os olhos tortos? Pra quê eu preciso de um óculos, se eu enxergo bem? Será que ele tem razão, se ele pensa realmente assim?
Essas foram poucas perguntas do que eu achei do porque de ter me dado um óculos verde. No começo, pensei que ele me achava vesga, e que achava que eu precisava usar óculos, que nem ele usava. Mas era verde! Eu, odiei o presente, na primeira semana. Mas depois... por ser dele, eu comecei a amar aquilo. E eu nunca usava aquilo. Não sabia porque usar! Em que momento eu usaria?
Descobri a utilidade do óculos, quando vi uma garota, que eu odiava, com um óculos parecido. Mas em vez de verde, ele era roxo. Demorei pra entender que era um óculos de sol, que usava quando estava sol. E demorei pra entender porque o dela era roxo. Eu era esperta, mas meu raciocínio, muitas vezes, era lento. Até que percebi que o dela é roxo, porque ela quis que fosse roxo. Comprou um óculos de sol roxo, com o modelo desses de grau. Simplismente, o meu era verde, porque Murilo quis que fosse.
Antes de não saber pra quê eu ia usar aquele óculos, eu o deixava em casa. Depois que descobri, usei algumas vezes. Mas foi muito pouco. Mas o óculos era lindo. Sabe quando você tem algo, que vc acha lindo, mas não o usa(ou o gasta), para preservar a sua beleza? Um exemplo são os adesivos. Eu colecionava, pagava 0,50 centavos por cada. Mas eu não os usava... porque achava-os lindo demais. Tinha medo de usá-los, pois se eu os usasse, eles seriam jogados fora um dia. Era esse pensamento que eu tinha com o óculos. Ele apenas ficava guardado, e servia para o prazer visual. Só servia para que eu o visse; não tinha utilidade no dia-a-dia. Isso porque, Murilo me deu.
Agora vou pra parte ruim. Certo dia, a nossa classe foi pro Parque das Araucárias. Era um parque onde você conhecia tudo da natureza. As árvores, os bichos... Eu gostava de ir na parte do museu, onde ficavam aquelas coisas empalhadas, do tipo insetos, cobras, jacarés, etc. Tinha as pedras raras lá também. Adorava esse parque... Tínhamos que levar um lanche, pra comer umas 4 horas da tarde. E sempre brincávamos de alguma coisa. Nesse dia, um de vários, depois do lanche das 4 resolvemos brincar de verdade ou desafio. Eu brinquei um pouco, até que a coisa começou a pegar fogo. Sabe como é... os pré-adolescentes gostam de se beijar. Isso eu queria experimentar, com Murilo. Eu era uma tal de "Boca-virgem", como o pessoal falava. Murilo, com certeza, não era mais BV. E imagina quem ficou com ele? Ilamara.
Eu chorei nesse dia. Depois que se beijaram no verdade-ou-desafio, ficaram se beijando depois da brincadeira. Eu não queria ver. Eu não queria ver. Eu queria que a dor sumisse. E meu ódio começou a nascer desse fato... e a minha ignorância com os outros foi crescendo. Cansei de ser a boazinha. Cansei de ficar emprestando as minhas canetas para aquela puta. Cansei de oferecer doce ou salgado para aquela vadia. Vadia que ficou com Murilo, apenas pra me provocar. Eu conseguia sentir o que ela sentia, quando o beijava! Eu via que era apenas por provocação. Não havia sentimento, não havia nada. Não havia atração. Não havia porra nenhuma. Ela beijava de olhos abertos, olhando para mim. O que ela queria que eu fizesse? Ela o beijava, de olhos abertos, e olhava para mim, pra saber se eu estava olhando... por isso tive tanta certeza que ela só queria me fazer chorar. fazer desistir dele.
Eu escrevia todo dia, na carteira, nosso nome...
ou o dele.
Murilo, Murilo, Murilo, Murilo. eu e Murilo... Eu e murilo.
Ou melhor, Eu VS Murilo.
Eu tenho 15 anos... e fui descobrindo o que era sentir algo por alguém. descobri o que era o ódio. o que era amizade. o que era tristeza... o que era sofrimento. e descobri também, o que não era amor. Que foi o que senti por ele. Tenho 15 anos, tenho 15 anos. E hoje, eu amo alguém que usa óculos. Mas não confunde D com T, não é lento, não usa gel, nem espeto. Odeia boné, trabalha o dia inteiro... E a influência? Desisti de Murilo, mas não desisti de mim.
Hoje o óculos verde está perdido em algum lugar de minhas bagunças. Eu ainda o uso...